Inutilezas

Dia 09 de Abril às 17h e 20h

Inutilezas

Dia 09 de Abril às 17h e 20h

O espetáculo conta a possível história das memórias de um casal de irmãos que passou a infância num lugar chamado de “lacuna de gente”. Protegidos pelo abandono, fizeram da invenção suas ferramentas de pensar e brincar. E do que não serve para nada, sua matéria de poesia. A peça pode contar também a possível história de uma dupla de atores que se reúne para transformar poesia em teatro, num jogo de cena que aposta na força da palavra e no espírito lúdico. Experiente em levar à cena textos que não foram originalmente escritos para o teatro, o director Moacir Chaves concebeu uma montagem enxuta. No palco, dois atores interpretam o texto de diferentes ângulos, lembrando ora dois irmãos, ora um casal, ora o poeta.

“Manoel de Barros tem uma escrita inteligente, crítica e lúdica, ao mesmo tempo. É um prazer ouvir diariamente suas construções sonoras. (...) Temos, agora, basicamente, uma maior concentração na sonoridade do espetáculo. (A relação com a plateia se modifica, também, já a partir da mudança de um espaço de arena para um frontal.)”, diz o diretor.

No cenário de Fernando Mello da Costa, duas poltronas e gaiolas de passarinho sobre o chão de madeira. Pontuando os versos, entram intervenções sonoras criadas por Pedro Luís, um dos fundadores do grupo Monobloco e da banda Pedro Luís & A Parede, executadas ao vivo pelo músico Chico Oliveira.

A peça, segundo Bianca Ramoneda, é uma ode às coisas "que não servem para nada”, supostamente inúteis no nosso cotidiano e que, ressignificadas, transformam-se em matéria-prima da poesia, em beleza e alimento para o espírito. Essa “inutilidade” é também metáfora para falar do ofício do artista. Tanto o poeta quanto a peça propõem a inversão de uma chave: a de que tudo o que fazemos precisa ter um sentido utilitário.

Ao estudar a produção do poeta há 15 anos, a autora percebeu que havia (certo) uma espécie de diálogo entre um livro e outro. O roteiro criado por ela foi encenado na época e visto pelo poeta, que deu sua bênção, escrevendo: "Não estou acreditando no que vi! Um teatro verdadeiro. Não é declamação de versos. É uma representação da palavra. Com os personagens vivos e as suas contradições".

O encontro da escritora com Manoel de Barros aconteceu em uma edição do extinto Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira em 1998 (2006), quando Bianca era estreante na literatura e o poeta estava sendo homenageado. Ela deu o livro de presente a ele e os dois passaram a trocar cartas.

“À medida que lia os livros do Manoel, ficava com a sensação de estar ouvindo uma conversa, como se os diálogos existissem, mas estivessem espalhados em vários livros diferentes. Marquei com inúmeros papeizinhos as páginas que endereçavam para outras páginas e assim sucessivamente. (...) Trabalhamos arduamente para fazer o desnecessário, como diria o poeta. E erguemos a peça”, conta Bianca.

A dramaturga e atriz ressalta que os poemas de Manoel são atemporais, universais e de qualidade inquestionáveis, capazes de renovar o sentido a cada leitura e criar novas conexões. “Num mundo desesperançado como o nosso, pautado pela economia, pela política, pela ciência e pelo pragmatismo, acho que é nosso dever puxar para a arte o lugar do encontro onde podemos perceber a realidade de outra forma. Mais lúdica, mas nem por isso mais frouxa”, diz Bianca.

Gabriel Braga Nunes também conta de suas impressões ao interpretar depois de 15 anos os diversos personagens possibilitados pela poesia do mato-grossense: “Manoel partiu, nós envelhecemos, mas os textos não. Revisitá-los agora é perceber diferente (...) Além disso, a peça não tem personagens definidos, então pode ser feita por qualquer pessoa em qualquer momento. Manoel situa a gente. Tem que olhar de tempos em tempos pra não sair da rota. Me animou a ideia de revisitar o tema tanto tempo depois. Afinal, 15 anos é a idade em que se deve assumir as irresponsabilidades.”.

Sobre a morte do poeta, ocorrida em 2014, aos 97 anos, Bianca o homenageia: “Existem muitas peças dentro de Inutilezas e é por isso que estamos aqui, nos reencontrando. A mesma equipe de 14 anos atrás, com uma integrante a mais: a saudade do poeta. Repetir, repetir, até ficar diferente’, Manoel ensinou. Ao repetir, percebemos que somos outros e nossa peça também. Inutilezas, hoje, conta a possível história do reencontro de artistas que um dia montaram uma peça e precisam testar seus deslimites por receio de amanhecerem normais”, finaliza.

 

Ficha Técnica

Texto: Manoel De Barros
Elenco: Bianca Ramoneda e Gabriel Braga Nunes
Direção: Moacir Chaves
Roteiro: Bianca Ramoneda
Músico Convidado: Chico Oliveira
Direção Musical: Pedro Luís
Direção de Produção: Jaqueline Roversi
Cenário: Fernando Mello Da Costa
Iluminação: Aurelio De Simoni
Figurino: Bia Salgado
Fotos: Marco Terranova
Ilustrações: Eduarda De Aquino

Sobre Manoel de Barros

Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em Cuiabá-MT, em 19 de dezembro de 1916 e mudou-se para Corumbá-MS, onde se fixou de tal forma que chegou a ser considerado corumbaense. Nequinho, como era chamado carinhosamente pelos familiares, cresceu livremente, em uma fazenda no Pantanal. No derradeiro texto do Livro das Ignorãças, 1993, Retrato falado, Manoel confessa:

‘Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do chão, aves, pessoas humildes, árvores e rios. Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e lagartos’.

Estudou num colégio interno em Campo Grande, e depois no Rio de Janeiro. Aqui conheceu pessoas engajadas na política, leu Marx e entrou para a Juventude Comunista. Anos depois, ao deixar o partido, o poeta passou um tempo na Bolívia e no Peru e, depois seguiu para Nova York, onde morou por um ano. Fez curso sobre Cinema e sobre Artes Plásticas no Museu de Arte Moderna.

De volta ao Brasil, conheceu a mineira Stella, no Rio de Janeiro, casaram-se e tiveram três filhos, Pedro, João e Marta. Em 1949 retornou ao Pantanal para tomar conta da fazenda deixada pelo pai. Embora tenha vivido em metrópoles da América e da Europa, para Manoel de Barros, a matéria prima de sua obra nasceu do chão pantaneiro.

Manoel de Barros é autor de 18 livros de poesia, além de livros infantis e relatos autobiográficos. Recebeu duas vezes o Prêmio Jabuti, duas vezes o Prêmio Nestlé e também foi premiado pela ABL, pela Biblioteca Nacional e pela APCA. O poeta faleceu em novembro de 2014, pouco antes de completar 98 anos.

Numa entrevista concedida em 1996 a José Castello, no jornal O Estado de São Paulo, ao ser perguntado sobre qual sua rotina de poeta, respondeu:

“Exploro os mistérios irracionais dentro de uma toca que chamo ‘lugar de ser inútil’. Exploro há sessenta anos esses mistérios. Descubro memórias fósseis. Osso de urubu, etc. Faço escavações. Entro às 7 horas, saio ao meio-dia. Anoto coisas em pequenos cadernos de rascunho. Arrumo versos, frases, desenho bonecos. Leio a Bíblia, dicionários, às vezes percorro séculos para descobrir o primeiro esgar de uma palavra. E gosto de ouvir e ler Vozes da Origem. Gosto de coisas que começam assim: ‘Antigamente, o tatu era gente e namorou a mulher de outro homem’.

Está no livro Vozes da Origem, da antropóloga Betty Midlin. Essas leituras me ajudam a explorar os mistérios irracionais. Não uso computador para escrever. Sou metido. Sempre acho que na ponta de meu lápis tem um nascimento”.

Manoel de Barros conta com uma consistente fortuna crítica, mas o melhor comentário sobre sua poesia é fornecido pelo próprio, seja em entrevistas, seja nos versos que escreveu – “desexplicando” o próprio trabalho literário. Segundo ele, “ao poeta faz bem desexplicar”, ou melhor, o entendimento de sua poesia não passa pelo crivo cerebral, pois “não é por fazimentos cerebrais que se chega ao milagre estético senão que por instinto linguístico”. E, num “despoemamento”, sintetiza sua concepção para o entendimento poético:

“Para entender nós temos dois caminhos: o da sensibilidade que é o entendimento do corpo; e o da inteligência que é o entendimento do espírito. Eu escrevo com o corpo. Poesia não é para compreender, mas para incorporar. Entender é parede; procure ser uma árvore”.